sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Ela

E todo dia, ou melhor, noite. Na mesmice de cada dia, na hora noturna e fria ele vem. Ela sente toda noite sua companhia amarga. Tanta amargura numa boca só que chega a ter vertigens e sentir um cheiro doce. Acontece que não sente mais cheiro algum, perdeu o gosto de respirar fundo e sentir o cheiro da vida. Quantas vezes não respirou podridão?
Então respira só. Respira por mais um minuto de vida. Respira sem se sentir digna de vida e mais logo transpira, é medo, medo de quando ele vem, toda a noite. E medo de ele não vir. Se não ele, quem virá? Se não vier a solidão, quem virá invadir suas noites? Será que é ela?
Ela que interrompe sem licença, desculpa ou educação. Será a próxima a visitar seu quarto à noite? Não sabe, e também e não deseja saber. Desejos? Aspirações? Ela não se lembrava mais o sabor disso. Só respira para viver o próximo minuto.
Levantou-se, só para viver o próximo minuto. Passou o café, no velho filtro de pano, na velha garrafa de café, velha xícara já trincada e ressecada, que a incomodava. Pensou se deveria ou não comprar uma nova. Largou o pensamento pra lá. Pra que pensar?
Liga o rádio a pilha na cozinha pra se ouvir menos, não para ouvi-lo. Liga a volume médio, bem assim, como todo dia, na mesma estação que anuncia as mesmas notícias, catástrofes, acidentes, assassinatos, sofrimento. E às vezes mais tarde uma mensagem ou música bonita que alegre o espírito.
Pensa se um dia aquilo irá mudar. Por que iria? Esta tudo bem, tudo nos conformes. Todos estão bem, tirando os desafortunados por natureza, ou por cruel escolha do destino. Porque haveria de mudar? Está tudo ali, seu café passado de manhã, adocicado e sem cheiro. O ar de cada minuto e o companheiro de todas as noites.
E quando estiver assim, chegando um dia ao fim. Meio morta, meio viva, bate um dia a sua porta. Ela vem. E ela se pergunte se é o fim. Fim do que? Afinal, o que se foi?

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